segunda-feira, 20 de setembro de 2010

"De longe toda serra é azul: histórias de um indigenista"

A obra do indigenista Fernando Schiavini mostra, em narrativa fácil e objetiva, o complexo cotidiano do indigenista e propõe um novo perfil para este profissional, com atuação mais condizente com a verdadeira luta por benefício aos povos indígenas .

Sandoval dos Santos Amparo*
De longe toda serra é azul, poético título furtado de um sertanejo amazônida, trata da questão indígena no Brasil e é um livro cuja linguagem destina-se aos atores de seu enredo: populares, políticos e pesquisadores em geral. Alcança o âmago da questão, pois, como sugere o próprio título, as verdadeiras cores de uma paisagem somente são conhecidas quando se ajuda a pintá-las; quando se participa, por assim dizer, do interior de seu movimento. Este é o primeiro mérito do autor, Fernando Schiavini, neste relato que, nem acadêmico nem ficcional – narrativa fácil e objetiva apenas – choca o leitor com as histórias vividas ao longo de duas das três décadas em que atua como indigenista na Funai e fora dela.
Longe de ser um despretensioso livro de aventuras, De longe toda serra é azul: histórias de um indigenista é, antes, político, como o autor antecipa logo no prefácio. As histórias que narra – algumas de repercussão nacional e/ou internacional – tratam de um passado recente e (des)conhecido, muitas vezes presente, e tem por objetivo não apenas o prazer da fruição literária, mas, principalmente, o prazer militante, pois servem de pano de fundo para (re)acender o debate sobre as questões indígenas no Brasil, interdisciplinares por natureza e envolvendo múltiplas questões referentes ao patrimônio cultural, ambiental e genético destes povos diante dos ideais desenvolvimentistas da economia brasileira. A preocupação de Schiavini, neste ponto, é tão evidente que, além do texto impresso, sua publicação traz um CD-mp3 com a leitura ambientada do livro, feita pelo próprio autor, visando assim alcançar a atenção de indígenas e sertanejos de tradição oral, ampliando o debate.
Deflagrando as difíceis condições de trabalho em campo, às quais se submetem os técnicos do Estado nos momentos de atuação arbitrária e burocrática do órgão indigenista (Funai), o autor utiliza-se de sua vivência para propor um novo indigenismo, menos romântico e mais audacioso, com um novo perfil deste profissional. No entanto, resta o alerta: teoria e engajamento apenas não bastam. Tanto quanto, é necessária grande gama de conhecimentos práticos e/ou multidisciplinares que a atuação em campo pode exigir a qualquer momento. Em seu cotidiano, um indigenista torna-se mediador intercultural, lavrador, enfermeiro, assistente social, piloto, servente de obras.
Malária, toda sorte de “carapanãs” (mosquitos), atendimento médico distante, solidão, distanciamento da família e da vida social, ameaças de morte e conflitos armados – o encontro com a miséria humana-; todos estes elementos estão fartamente presentes na atuação destes profissionais. Não bastasse, o desejo de transformar realidades grafadas com ganância e tiros transforma-os ainda em articuladores sociais, muitas vezes, contra o interesse de poderosos atores locais, como fazendeiros, grileiros, comerciantes; “entidades de apoio” - como a igreja e ONGs - e, às vezes, até a própria Funai e o Estado.
Redigido por um técnico do órgão indigenista, o texto é totalmente independente: não há meias palavras e são realizadas as críticas necessárias à atuação deste órgão, ainda que preservando a imagem de indigenistas clásssicos, como Rondon, os irmãos Villas Bôas e outros. Não sejamos ingênuos, porém. Desde Marx & Engels sabemos que “o Estado é o comitê da burguesia”, logo – por esta lógica – o órgão indigenista, no seio do Estado burguês pode (e deve) ser entendido como um órgão do Estado para os indígenas, e não pelos indígenas, o que pode ser verificado desde o antigo SPI, da qual a Funai é herdeira.
A criação do SPI – Serviço de Proteção aos Índios e Localização da Mão-de-Obra Nacional (1910-1967) pelo Mal. Rondon constitui um momento histórico, pois é a primeira vez que o Estado reconhece e legisla sobre o direito à terra indígena, um avanço com relação ao período anterior. Foi importante, ainda, ao proteger diversos grupos indígenas de massacres diversos (quando conseguiu contê-los), ainda que para isso fossem adotadas medidas drásticas, como o deslocamento de muitos grupos de seus locais de origem ou a criação dos parques indígenas, com a aglomeração de diversas etnias numa área demarcada e protegida. Representou um primeiro passo no processo de humanização do indigenismo estatal. Todavia, não se opôs à voracidade com que o “desenvolvimento econômico” expandiu-se para os confins do território brasileiro, consolidado em alguns casos, com o apoio estratégico e militar dos próprios indígenas. Ao contrário, o SPI “abriu” terras para o avanço do capital sob sertões e possibilitou, em vias legais, o “melhor aproveitamento” dos recursos das terras indígenas. Os próprios índios eram considerados mão-de-obra em potencial, a serem “localizados”, como afirma o próprio nome do órgão.
Ainda hoje muitas populações tradicionais continuam sendo retiradas de suas terras para o avanço do agronegócio, das hidrelétricas, das rodovias, das unidades de conservação.
Com a extinção por falência do SPI e criação da Funai (1967) (quase que imediatamente após o Ato Institucional nº 5, de 1965), os militares recolocam o indigenismo em posição estratégica para o Estado. Há uma revalorização da questão indígena, mas o sentido de sua atuação (pró-Estado) acentua-se. Fala-se em patrimônio indígena, mas sua gestão cabe à Funai (e não aos próprios indígenas). O Estatuto do Índio, de 1973, ao mesmo tempo em que visa preservar a cultura indígena, prevê “integrá-los progressiva e harmoniosamente à comunhão nacional”, e fortalece a tutela – muito eficaz em tempos de ditadura –, que vigora até os dias atuais, ainda que flexibilizada. Em muitas áreas seguem ou se iniciam projetos de arrendamento, de exploração madeireira e mineral. Amplia-se a dependência do indígena com relação ao Estado. Tenta-se toda sorte de projetos de desenvolvimento, mas a organização comunitária é, em muitos casos, solapada. As terras indígenas tornam-se palco para os mais diversos tipos de uso “produtivo” do solo, segundo a concepção produtiva não-indígena. Pretendia-se com isso que “desenvolvimento” alcance as aldeias. É nesta época, no ápice do regime militar (década de 1970) que Fernando Schiavini chega à Funai. Ele e os de sua geração lutaram contra a ditadura para mudar o sentido da atuação da Funai.
Findo este período, surge a democracia, bastante propalada, mas em muito parecida com a polis grega (da qual apenas os cidadãos livres podiam gozar). Os governos pós-militares promulgam a constituição (1988) e nela o artigo 231, que garante importantes direitos indígenas. Entretanto, o interesse privado continua prevalecendo sobre o público e a atuação anti-indigenista da Funai continua alvo de descontentamento dos indigenistas. Uma vez mais as narrativas de Schiavini viram pano de fundo para o debate político. Por fim, após apresentar com suas histórias os principais dilemas do indigenismo brasileiro, o autor encerra seu livro anunciando o debate sobre como pode, então, a Funai atuar em benefício dos indígenas e não contra seus interesses.
O ponto de partida para este novo debate é a organização comunitária dos povos indígenas para representar seus interesses frente ao Estado capitalista e os interesses que defende, bandeira que o autor hasteou junto com os índios ainda na década de 1970. Alguns desdobramentos: anuncia-se o fim da relação entre os “meus” índios do antropólogo conhecido, que passa a ser “meu” antropólogo, dos índios tais, ou seja, cresce a clareza dos índios com relação ao papel dos técnicos da Funai, das igrejas ou das ONGs. Cresce a figura do próprio índio, em busca dos seus direitos legais. Os indigenistas (e pesquisadores em geral) tornam-se colaboradores técnicos dos povos indígenas.
De longe toda serra é azul: histórias de um indigenista

Schiavini, Fernando

Criativa Gráfica e Editora, Brasília, 2006

220 páginas
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(*) Sandoval dos Santos Amparo é geógrafo pela UFF e fotógrafo. Na Funai desde 2004. Atuou na identificação terras indígenas no Rio Grande do Sul e junto a povos indígenas em Rondônia, Mato Grosso e Bahia, através da Coordenação Geral de Artesanato da FUNAI.

Fonte: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13469