terça-feira, 13 de maio de 2008

VENDO O TEMPO PASSAR: A ANTROPOLOGIA DIANTE DA HISTÓRIA

Autor: Roberto Schiavini

Resumo: Se fosse possível uma única definição para designar a constituição das identidades, “diferença” seria um termo privilegiado, afinal é na diferença que se articulam o “nós” em contraposição ao outro. No processo histórico das disciplinas acadêmicas, identidade e diferença aparecem imbricados: assim como a sociologia constituiu-se em contraste à psicologia, antropologia e história estão ainda hoje forjando identidades com rupturas e aproximações em um processo interativo nem sempre feliz, mas produtivo.

O texto aqui proposto tem por objetivo uma reflexão panorâmica acerca da relação entre as disciplinas antropologia e história por meio de recortes considerados relevantes e que demonstrem aproximações e distanciamentos entre as duas disciplinas. Para efeito de análise e organização textual considero frutífero separar em três momentos distintos o caminho percorrido pela antropologia em seu diálogo com a historiografia: 1) momento constitutivo; 2) distanciamento; e 3) aproximação. A separação não significa uma ordenação cronológica e seqüencial das escolas e dos paradigmas antropológicos, indicando uma abordagem sincrônica. Neste entremeio abordarei três tradições intelectuais como vertentes da antropologia desenvolvida no decorrer de sua história: evolucionismo; funcional-estruturalismo e a antropologia pós-estruturalista .
É importante esclarecer que a antropologia a qual me refiro neste trabalho é aquela que se dedica aos aspectos sociais e culturais como eixo temático privilegiado, não me retendo ao caráter físico e biológico desta empresa acadêmica.

Contextualização Geral:
A Antropologia, disciplina acadêmica inserida no quadro das Ciências Sociais modernas, tem como locus privilegiado o estudo o homem em seus aspectos sociais e culturais, sendo constituída como disciplina no final do século XIX. Seus precursores estavam interessados primordialmente em desvendar o que de universal havia nas práticas significantes do homem nos vários cantos do globo terrestre. Conforme Clifford Geertz, o ideal universal do homem do iluminismo requisitava para a antropologia a tentativa “de reconstruir um relato inteligente do que é o homem ... Tendo procurado a complexidade e a encontrado numa escala muito mais grandiosa do que jamais imaginaram, os antropólogos embaralham-se num esforço tortuoso para ordená-la. E o final ainda não está à vista”. (GEERTZ, 1989: p. 25).
No final do século XVIII o ocidente está envolto a transformações estruturais radicais que modificam substancialmente o modo de vida e das relações sociais como um todo, impactando fortemente a produção sociológica, especialmente no que se refere aos temas da coesão e da solidariedade, chegando ao ponto de produzir preocupações no âmbito de pensadores sociais como Saint-Simon, Auguste Comte e posteriormente Émile Durkheim que se dedica a estudar os contornos de uma hipotética sociedade anômica e a alternativa da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho social. (QUINTANEIRO et. al., 2002) No século XIX, o panorama já consolidado, é outro. O colonialismo propiciou a abertura de um mundo material e simbólico até então ignorado pela Europa moderna. E é no movimento da conquista colonial que se delineiam os contornos da antropologia moderna.
Estudiosos como Bachoven, Fustel de Coulanges, MacLennan, Tylor, Morgan e Frazer, se debruçam sob essas novas formas de sociabilidade com o intuito de estabelecer um painel etnográfico geral da humanidade. (LAPLANTINE).

Momento constitutivo
A questão antropológica (leia-se também sociológica) que se colocava no primeiro momento era a seguinte: Como poderíamos conceber povos que estavam fora de tudo que se tinha como referência de uma elaborada conceituação de progresso e civilização?
No século XVIII, sob o fenômeno do iluminismo, resposta cômoda foi negar uma humanidade e consequentemente uma história e cultura para estes povos outros. Hegel chegou a afirmar que não havia história para a África. No entanto, no novo panorama expansionista da Europa sobre as Américas, África e Ásia, já não era interessante ignorar povos que estavam em intermitente contato com a administração colonial.
A antropologia surge com a proposta teórica de uma classificação hierárquica dos grupos humanos tomando como referência o tempo histórico necessário para que cada um desses agrupamentos chegasse ao grau referente de civilização européia . Desenvolvimentos tecnológico, econômico, cultural e social, servem de base para a hierarquização em vários níveis no tempo histórico.
Morgan estabelece três estágios pelas quais passaria a humanidade: selvageria, barbárie e civilização. Frazer pesquisando os aspectos religiosos distingue também três estágios de desenvolvimento: feitiçaria, religião e ciência. É importante lembrar que essa abordagem classificatória já existia antes do surgimento da disciplina sociológica e antropológica. O precursor ideológico dos estudos sociais e do positivismo, Augusto Comte, classificou o desenvolvimento da humanidade em três categorias seqüenciais: estado teológico, metafísico e estado positivo.
Pautando-se em uma concepção classificatória do homem no tempo e no espaço e apoiada pelo modelo histórico clássico linear, a antropologia constitui-se e se consolida como disciplina, construindo teorias explicativas para a diversidade humana existente nos vários cantos do mundo e buscando os elementos universais que os liguem a uma só categoria: um homem genérico.
Internamente, a antropologia busca afirmar uma identidade que, como veremos mais adiante, a levará a uma ruptura com o modelo evolucionista, bem como, uma negação quase que total de qualquer aspecto da mudança social, seja no tempo ou no espaço.

Distanciamento:
Parcialmente em resposta ao evolucionismo, a antropologia caracteriza-se na primeira metade do século XX, pela rejeição da história como aporte teórico explicativo capaz de dar conta da diversidade cultural existente. No evolucionismo a busca de elementos universais era realizada a partir de análises macro-sociológicas e trabalho feito em gabinetes, tendo como fonte os relatos de viajantes e cronistas. Cada vez mais a análise se fechava em grupos específicos, privilegiando a dinâmica interna e tendo como referência a estrutura social e as funções institucionais que a atribuem forma. O trabalho de campo passa a ser feito por especialistas em locais e períodos determinado pelos pesquisadores, e tendo o tempo presente como delimitação da pesquisa.
Radcliffe-Brown, Malinowski e posteriormente Lévi-Strauss são os principais responsáveis por essa mudança de enfoque na antropologia, ao instaurarem uma ruptura com uma história conjectural (reconstituição especulativa dos estágios). A partir de seus trabalhos, o tempo histórico é deixado de lado, argumentando-se que qualquer cultura deva ser analisada em uma perspectiva sincrônica, a partir unicamente de seus dados contemporâneos (CUCHE, 2002: p. 71).
A despeito da mudança de foco, o trabalho comparativo continua a ser o principal objetivo da antropologia. Só que agora ancorado por um levantamento sistematizado feito in loco nas outras sociedades. Lidando com concepções de tempo diversas e destituídos de documentos escritos, a antropologia elabora um discurso a-histórico para fortalecimento da empreitada antropológica. Segundo Clifford Geertz,

“a principal razão pela qual os antropólogos fogem das diversidades culturais quando chegam à questão de definir o homem, procurando o refúgio nos universais sem sangue, é que, confrontados como o são pela enorme diversidade do comportamento humano, eles são perseguidos pelo medo do historicismo, der se perderem num torvelinho de relativismo cultural tão convulsivo que poderia priva-lo de qualquer apoio fixo”. (GEERTZ, 1989).

Aproximações
O relativismo a que se refere Clifford Geertz é aquele produzido pela escola culturalista americana a partir de Franz Boas e que coloca como postulado a necessidade de se fazer a reconstrução histórica dos vários grupos humanos antes de se fazer generalizações comparativas entre elas. O particularismo histórico é a abordagem privilegiada dessa escola, apontando a relevância de se buscar entender cada grupo específico por ele mesmo e não mais em comparação à sociedade ocidental. Para Franz Boas, cada grupo cultural tem uma história única (contexto) que depende por um lado, dos desenvolvimentos internos peculiares a este grupo social, e por outro, das influências externas às quais estão sujeitos. Tal empreitada esbarra em dificuldades técnicas intransponíveis, entre elas: escassez documentação sólida para uma construção histórica de cada grupo específico; a variedade de concepções de temporalidade histórica dos vários agrupamentos humanos. Apesar disso, uma enorme contribuição da perspectiva boasiana é o relativismo.
Evans-Pritchard, antropólogo estruturalista britânico, “alertava para as conseqüências negativas das abordagens socioestruturalistas e funcionalistas sincrônicas, por removerem artificialmente os sujeitos da pesquisa antropológica dos processos históricos do colonialismo e da expansão do estado-nação” (ALMEIDA, 2003: p. 28). Trabalhando entre os Nuers, Pritchard considera o tempo mostrando como este é medido pelos espaços intercalares criados, concebidos e vivenciados pelas linhagens e clãs patrilineares. Assim, na medida em que eles caminham para o ancestral comum, consequentemente, chega-se mais perto da fundação da linhagem avançada, na sua esfera temporal. (DAMATTA, 1989).
Na contemporaneidade temos vozes consoantes em uma busca dialógica entre antropólogos e historiadores. O antropólogo norte-americano Marshall Sahlins é uma dessas vozes. Sua proposta é concebida através da articulação entre o estruturalismo simbólico de Lévi-Strauss e o estruturalismo histórico de Braudel:

“com a proposta de uma “antropologia histórica e estrutural”, Sahlins propõe um diálogo renovado entre a história e a antropologia, e entende que a estrutura é composta por categorias culturais concebidas como uma rede, ou seja, um sistema de diferenças ou um conjunto de categorias. Sua proposta é repensar em termos dialéticos, estrutura e evento/ estrutura e história, o que o faz concluir que enquanto a história transforma estas “redes culturais”- estrutura, a própria história é reordenada no mesmo processo.” (PORTELA, 2006: p. 26).

Sahlins (1990) busca integrar sincronia e diacronia a partir da incorporação dos aspectos permanentes (estrutura) e dinâmicos (história) apontando como a cultura é articulada a partir dessas duas categorias. Eric Wolf, propõe um debate instigante acerca das teorias do sistema mundial, também buscando dialogar com a história. Segundo Almeida, estes autores estão “preocupados em enfatizar o dinamismo, a variabilidade e historicidade da cultura.” (2003: p. 32)
A antropologia hermenêutica iniciada a partir das discussões de Geertz e sua antropologia interpretativa, a qual Oliveira (1986) chama de “paradigma da desordem”, aproxima-se da história ao se distanciar do “paradigma da ordem”, representado pelo estruturalismo e funcionalismo. A diferença fundamental entre os dois paradigmas, e que nos interessa aqui, é o caráter objetivo e subjetivo de perceber o sujeito (como objeto de pesquisa), e por conseqüência, o caráter histórico e a-histórico presente na forma de concebê-los.
Para finalizar, gostaria de colocar um quadro elaborado por Cardoso de Oliveira, e que a meu ver, sintetiza ao menos em parte, o que aqui foi discutido, deixando para o leitor uma ordem esquemática desse trabalho.

Matriz Disciplinar
Tradição
Tempo
Intelectualista
Empirista
Sincrônico Paradigma Racionalista
“Escola francesa” Paradigma Estrutural-Funcionalista
“Escola britânica”
Diacrônico Paradigma Hermenêutico
“Antrop. Interpretativa” Paradigma Culturalista
“Escola Norte-americana

Considerações Finais
A antropologia, no decorrer desses quase dois séculos de existência, vem procurando subsídios teóricos e metodológicos que sustentem a grande empreitada a que se propôs: entender o homem em todos os seus aspectos. Porém não foi previsto, inicialmente, a dinamicidade e a subjetividade das ações e das relações sociais humanas, no tempo e no espaço, incluindo aí, a do próprio pesquisador. A disciplina histórica percorreu, por vezes ao lado, outras à frente e ora servindo como apoio ou como contraponto crítico um processo dialógico com a antropologia. É inegável que essa tensão disciplinar ajudou a forjar um discurso identitário para a antropologia. E como qualquer construção de identidades, este é um processo de negociação e está sempre em via de mudança. Fato é que esse “outro” possibilitou um encontro a que defino como nem sempre feliz, mas, sobretudo, frutífero.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamoforses indígenas: indentidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
DAMATTA, Roberto - Relativizando, Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
GARDINER, Patrick. Teorias da História. Lisboa, 1995.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
LAPLANTINE, François - Aprender Antropologia. São Paulo, Brasiliense, 1988.
LEVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Companhia Editora Nacional. São. Paulo, 1976.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacifico Ocidental. São Paulo, Abril, 1976.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. A Categoria de (Des)Ordem e a Pós-modernidade na Antropologia. In.: Anuário Antropológico 86. UNB. Brasília, 1986.
PORTELA, Cristiane de Assis. Nem ressurgidos, nem emergentes: a resistência histórica dos Karajá de Aruanã em Goiás (1980-2006). Dissertação de Mestrado. Goiânia: Programa de Pós-Graduação em História-UFG, dezembro de 2006.

QUINTANEIRO, Tânia. Um toque de clássicos: Marx, Durkeim e Weber/ Tânia Quintaneiro, Maria Ligia de Oliveira Barbosa, Márcia Gardênia de Oliveira. 2ª ed. ver. amp. – Belo Horizonte: UFMG, 2002.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

SCHWARCZ, Lilia K. Moritz e GOMES, Nilma Lino (orgs.) Antropologia e História: debate em região de fronteira. BH: Autêntica, 2000.

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